O afundamento de Maceió pela Braskem: desmonte da defesa coletiva e conivência estrutural

19/08/2025 10:24 - Alexandre Fleming
Por Alexandre Fleming
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A destituição de Ricardo Melro da coordenação do Núcleo de Proteção Coletiva da Defensoria Pública de Alagoas não é um fato isolado. No dia 4 de agosto de 2025, a medida retirou da linha de frente um dos quadros mais combativos e tecnicamente preparados na defesa das vítimas da tragédia provocada pela Braskem em Maceió. A decisão ocorreu poucos dias antes da divulgação de um estudo internacional que apontava novos elementos sobre a subsidência e seus impactos. A coincidência temporal é incômoda demais para ser tratada como mera troca administrativa. Ainda que nenhum ator político assuma publicamente a autoria ou motive abertamente a exoneração, é impossível ignorar que um movimento dessa magnitude só se concretiza com o aval tácito de instâncias superiores, e que esse aval é, em si, uma escolha política.

O afastamento de Melro se insere num processo mais amplo de esvaziamento institucional. A Defensoria argumenta que a atuação do órgão não foi comprometida, mas a substituição de vozes técnicas e independentes, num momento de avanço das investigações e das demandas judiciais contra a Braskem, soa como um gesto calculado para reduzir tensões com a empresa e seus aliados políticos. Entidades e movimentos como o Movimento Unificado das Vítimas da Braskem (MUVB) e o Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) repudiaram a decisão e exigiram sua revogação. É a sinalização de que o conflito não se dá apenas nos tribunais, mas também dentro das estruturas responsáveis por proteger a população atingida.

A crise da Braskem não nasceu ontem. Sua origem remonta à exploração de sal-gema em Maceió, atividade iniciada pela Salgema S/A e assumida pela Braskem em 2002. A extração, realizada a poucos quilômetros da superfície e em área urbana, ignorou alertas de especialistas desde a década de 1980. Estudos da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) já apontavam riscos significativos em 2010, mas só em março de 2018, com tremores e rachaduras nos bairros do Pinheiro, Mutange, Bebedouro, Bom Parto e parte do Farol, a gravidade tornou-se impossível de ignorar. Em 2019, o Serviço Geológico do Brasil (CPRM) confirmou a relação entre subsidência e extração mineral.

O resultado é o maior crime socioambiental urbano em curso no mundo. Cerca de 60 mil pessoas foram removidas de suas casas. Mais de 14 mil imóveis foram condenados. Bairros inteiros deixaram de existir. Patrimônios culturais, escolas, igrejas centenárias, terreiros e outras formas de representação simbólica e territorial foram destruídos ou isolados. O trauma não é apenas material, pois reconfigurou a cidade, destruiu comunidades e deixou milhares sem referência territorial e afetiva.

Apesar da dimensão do desastre, o que se viu foi uma sucessão de acordos que, mais do que punir e responsabilizar, buscaram encerrar o conflito por meio de indenizações que não beneficiam diretamente as vítimas e foram firmadas sem escutá-las ou contar com seu aval. Em muitos casos, os recursos serviram a interesses institucionais ou intervenções que não atendem à reparação urgente individual e comunitária. A situação dos Flexais é emblemática. Além de ficarem de “fora” do perímetro de risco estabelecido oficialmente, sofrem um processo de ilhamento socioeconômico. Mesmo sem subsidência detectada oficialmente, enfrentam isolamento social e institucional, ausência de transporte, escolas, segurança e dificuldade de acesso a serviços básicos. 

Em 2019, o Ministério Público Federal (MPF), o Ministério Público Estadual de Alagoas (MPAL), a Defensoria Pública da União (DPU) e a Defensoria Pública de Alagoas (DPE) firmaram com a Braskem um acordo homologado na Justiça Federal, prevendo R$ 3,7 bilhões para indenização e realocação das vítimas. Em 2020, a Prefeitura de Maceió assinou um termo de R$ 1,7 bilhão, também homologado judicialmente, com cláusulas que blindam a empresa de novas ações, salvo provas incontestáveis de danos adicionais. Agora, especula-se sobre um possível terceiro acordo com o governo estadual, o que fecharia um ciclo em que as três esferas de poder federal, municipal e estadual atuam não para ampliar a responsabilização, mas para administrá-la dentro de limites aceitáveis para a Braskem.

O problema é que todos os entes políticos estão implicados. O Executivo municipal e o estadual, a Assembleia Legislativa, a Câmara de Vereadores e, por extensão, seus principais líderes políticos, sempre estiveram cientes da exploração mineral em área urbana e de seus riscos. Alguns, historicamente, foram beneficiários de patrocínios e parcerias institucionais com a empresa. Nenhum, em décadas, atuou de forma firme para suspender ou regular de modo seguro a atividade. Quando a tragédia se consolidou, a resposta foi transformar o problema em objeto de negociação e não de justiça.

O afastamento de Ricardo Melro simboliza essa capitulação. A defesa coletiva, já fragilizada por acordos que priorizam a contenção do conflito sobre a reparação integral, perde um de seus nomes mais ativos. As vítimas perdem um aliado disposto a confrontar a empresa com dados e fundamentos técnicos. E a cidade perde, novamente, a chance de fazer prevalecer o interesse público sobre os interesses corporativos.

O afundamento de Maceió não é apenas geológico, é também político e institucional. 

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